sábado, maio 31, 2008




Calças arregaçadas até ao joelho, que, como ponta fixa de um pêndulo, se salpica com a água arrastada lentamente em força pelos pés..
Pernas delgadas mergulham na água como estacas para logo as vermos tomarem direcção diferente..
Os dedos dos pés, que parecem maiores, quando quietos, inspeccionados eram por vagas de pequenos peixes curiosos que os mordiam em cócegas ..
O reflexo solar na água proporcionava um conforto complementar ao vagar meio molhado do tempo ali estendido..
As pedras em multidão cintilavam como jóias no fundo, e quando da água saíam, murchavam o brilho em desilusão..
Entardecia e uma luz mais baixa , ainda quente, acompanhava aquele silêncio acolhedor ...
Ao meu lado duas crianças, ..., meus amigos, ..., e eu criança uma vez mais..
Pés esquecidos, e três cabeças outrora baixas, surgiam agora erguidas
Encantávamo-nos com aquelas formas castanho-douradas que, lentamente dançavam à nossa frente e ao nosso redor..
Peixes de escama seca, serpenteando no entanto entre os nossos corpos e braços sem quebrar, com elegância, nadam no ar de pós reluzentes.
Da relva fofa se levantam estas folhas esquecidas, empurradas lentamente pela brisa, para se tornarem vida em movimento.
Na luz ofuscante, semicerro a visão de escamas de brilho, e deixo de perceber a minha alegria num riso infantil conjunto que se dilui lentamente no som da àgua a correr..
 
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sábado, dezembro 08, 2007
Brown
Dei por mim a fechar os olhos por instantes enquanto a omilia decorria. Estremeci e reassumi a postura atenta com a qual havia impressionado nos primeiros instantes da cerimónia. Acreditava em Deus, mas isto aborrecia-me, desde sempre que o havia sentido, mas também sabia que me cabia esta obrigação, a qual, a custo, suportaria.
Os sussurros decorados e as canções de tristeza deixavam-me triste também. Por isso tantava abstrair-me de tal ambiente a percorrer com o olhar as formas que a nave central ostentava, assim como as cabeças mais altas ou pequenas e os seus diversos penteados, descobertos, tapados, armados ou rarefeitos. Qualquer voz, ruído dissonante da homogeneidade católica activa era notado e alvo de perseguição visual até ser identificado. Estranhamente um conjunto de espantadas exclamações, pequenos risos, que da fila de trás pareciam mover-se em onda até à frente, onde eu me encontrava fizeram-se ouvir. Não gostava muito de olhar para trás, estragava a postura, e o altar era, como é óbvio, em frente. Mas deixei cair o lenço, e lá tive que me virar. No corredor central, como teria conseguido entrar? estava um cão castanho magricela. Ninguém o afugentou na sua desconfiada caminhada em direcção ao padre, que se encontrava frente ao altar, de livro na mão, óculos a escorregar pelo nariz e olhos azuis e doces. O septuagenário fechou o livro devagar e desceu os três degraus, ficando mais ou menos à minha altura. “Que fazes aqui, pá?”, perguntou ao magricela. Fez-lhe uma festa na cabeça, virou-se e voltou a subir os três degraus. Com dois dedos tocou na esponja do microfone e nos ouvidos de toda a gente. “Alguém quer ficar com este malandro?
Voltei eu e a minha mulher de carro azul resplandecente para casa, a nova casa de um magricela castanho que viajava também no banco de trás.
 
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sexta-feira, outubro 12, 2007
Por esta peça abençoados
Argola de secção hexagonal, em prata, adornada em relevos de plantas, flores e as iniciais de quem a recebeu, em outro tempo, ainda no mesmo espaço roda agora nas minhas mãos. Conhece bem o interior seco em madeira de uma gaveta aberta duas vezes ao dia. Conhece pior, mas mais intensamente o espaço livre, espaço aberto em toalha branca, de moldura rendada por mãos pacientes e prendadas. No topo da mesa rectangular, resta em posição previlegiada para as outras argolas avistar. É na meta de dez anos de casamento que a ordem para esta se fazer se dá . Dois dias depois, o artífice, rodeado de quatro paredes muito próximas, num espaço repleto de ferramentas, instrumentos da arte, maiores e menores presos às paredes, enceta a criação. Longas gavetas de madeira abertas e repletas de centenas de pequenas peças metálicas aconchegam ainda mais o cubículo. Um papel amachucado, com o desenho da encomenda, treme em cima da mesa ao ar largado de uma ventoinha deitada no tecto. Sons secos de trabalho desfazem-se nas paredes de tabique. De duas peças esculpidas, uma é eleita e o molde nasce desta preparado para a prata liquefeita acolher no seu ventre. Começa então, num calor de fumo, a escorrer livre, em fio grosso, a prata na direcção do berço dessa nova forma. E acabada a secagem em objecto duro, o molde é desfeito. Perante esperada imperfeição e palidez de côr , muito trabalho de rectificação, aperfeiçoamento e polimento sobram na necessidade de acabar. E então, dois mais dois dias depois numa pequena caixa azul turquesa de papel aveludado, numa entrega em toque meigo de mãos aflorado, na pressa de um beijo demorado, as iniciais em alto relevo encontravam a sua correspondente dona. Os seus guarda-napos jamais passariam incógnitos ou esquecidos. Hoje são os meus por esta peça abençoados.
 
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sexta-feira, agosto 31, 2007
Em silêncio
Duas linhas ondulantes de pele limpa abrem-se à passagem de um choro.
Duas mãos erguem-se soltando os dedos em súplica.
Dois joelhos tombam em dor aceite como mais um castigo que a pena divina impõe.
A exaustão da fome, do frio e da exclusão percorrem o comprimento do corpo, numa vaga que se desfaz num súbito fitar o vazio logo seguido do doce encerrar em água das pálpebras.
Finda este movimento com o estrondo seco de carne espalhada num chão molhado.
Encharcado estava o dia desde o amanhecer. E escuro. Do céu pareciam descer nuvens de corpo negro que tudo encobriam e gelavam. Linhas imóveis de veículos soltavam o contínuo elemento de ruído que tudo preenchia. Entre difusa e frágil luz natural, faróis cintilavam gotículas em tonalidades quentes. Olhares em espaço apertado esgueiravam-se uns dos outros, corpos encolhiam-se no medo do contacto e o silêncio predominava no transporte comum que se movia numa espera entre espasmos. Outra dimensão envolve o tempo ali passado e uma inquietação crescente desfaz-se em apatia de aceitação. Olhávamos mas só pensamentos desfilavam à nossa frente.
Até que a porta se abriu do mesmo modo de sempre. Um vulto enorme perfila-se num corredor ladeado de olhares agora atentos e incrédulos. Um cobertor de fuligem envolve um corpo com cabeça de cabelos longos e negros em água. Um cheiro de pestilência parece atravessar-nos demoradamente. Imóvel em pé, de olhar fugidio, este homem parece agora diminuir de tamanho. Sussuros levantam-se criando estofo para exclamações de repúdio. Estas fazem o homem contorcer-se em aflição. Num destes movimentos a miserável veste escapa-se em queda revelando uma magra, faminta nudez envolta em sujidade. O olhar fugidio é agora franco, aberto a todos os presentes e a sua tristeza latente remete-nos ao mais profundo silêncio.
 
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sexta-feira, junho 15, 2007
Dia de mudança
Hoje é o dia.
É o dia das mudanças pelo qual tanto esperei.
Esperei na esperança sem saber quando mas sabendo que não podia ser, não podia ser a minha última morada aquela que a humidade havia invadido, o pó havia coberto, o silêncio havia conquistado, o abandono corroído.
Meu verde veludo que outrora por tantas vezes acariciado, vê-se agora nas pontas descolado , o brilho acetinado sob camadas de tempo escondido,e o exemplar equilíbrio sólido é apenas memória à conta de empeno revelado.
Deixo-te portanto velha sala, retendo como recordação apenas aqueles tempos da música de piano a esvoaçar nas cortinas das janelas abertas, dos pés e das mãos junto a mim a tocar-se, dos vários naipes voadores, da tremura em grave dos pés das crianças por todo o soalho. Desde a minha chegada, poucos dias após a minha criação, constatei estar o meu lugar nesta sala predestinado, sala de evocação de glórias passadas, de namoros e guerras, de conversas francas e dissimuladas, de fumos nocturnos e jogos de cartas.
Como marca da minha ida presença deixo quatro marcas num chão de limpeza despojado.
Flutuo em mãos agora escadas abaixo, estas que havia visto apenas uma vez, desço três pisos e conheço a porta da entrada. A entrada de serviço, ao lado das abandonadas cavalariças estava há muito bloqueada. Nos instantes em que repouso aí absorvo pela última vez os tons de cheiro que as paredes haviam retido e recordo.
Nova morada me espera no fim desta estrada. E a história de um antigo pedaço de madeira está longe de estar acabada.
 
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sábado, junho 09, 2007
Docemente
Sinto a noite a descer docemente nas minhas costas. Os meus olhos descem com ela, bem abertos em lágrimas num movimento espiral que a cabeça executa agora de forma lenta como se o mesmo tivesse por demais vezes sido repetido. As palmas das mãos são os extremos dos ramos mais pesados que dançam em torno do tronco acompanhando-o uma última vez. Este maciço que roda e se afunda no pó negro abre nervuras que dispersam raios laminares de luz em tons aquecidos em melancolia. Sem pausas, sem abrandamentos a dança encerra no vazio, dilui-se no nada e só as folhas secas ainda formam uma última volta de sombras e ecos do que havia sido.

Convivo agora com memórias, algumas familiares, outras não. O meu ser espalha-se em recordações mais acesas ou intermitentes. Rio mais do que havia rido e não choro, mesmo quando me vejo triste. Eu sou ainda. Na minha pobre condição de ser o que fui para os que não me querem perder apesar de já terem perdido vou perdendo côr, perdendo o som da fala, perdendo as feições. Sem abrandamentos, sem pausas e com todo o tempo do mundo à minha frente a ternura do melhores momentos é a última a desvanecer...
 
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segunda-feira, maio 28, 2007
Cruzamento

Atropelando-se nos seus próprios passos, havia finalmente chegado à nevralgia da sua curta viagem. Em Sarajevo, o cruzamento que agora se abria aos olhos era tido como um posto de morte: de visão privilegiada para snipers, a intersecção dos dois amplos segmentos de asfalto conformava campo fácil para a mira de armas de precisão.

Sabia disso. E também que eram parcas as probabilidades de se desenlear das avenidas e sair a respirar do outro lado. Apanhou breves suspiros de ar, concentrou-se no objecto e soltou-se em correria.

Os disparos não se fizeram sentir, mas ainda assim os nervos tropeçaram-no. Desamparado, estatelou-se em pleno centro.

A dor intensa que a gravidade lhe proporcionou mal se avizinhava ao medo que lhe rebentava nas veias. É que, em movimento, ainda acalentava esperanças de cumprir o trajecto na totalidade; prostrado, a coisa já complicava… Limitou-se a cobrir de pálpebras as duas íris e aguardou que a bala cumprisse o seu mecânico desiderato.

Um… dois… dez segundos se passaram... e ainda se sentia! Venceu a timidez e espreitou o provável local onde as cobardes miras telescópicas se encobriam... Nada. Silêncio absoluto.

Experimentou a euforia. Qual fosse a razão, ainda estava vivo. Pedia-se, pois, rapidez de movimentos. Recompôs-se e lançou o trôpego corpo para o resto que lhe sobrava, uns escassos metros mais, nem meia dúzia de passos para se acolher no abrigo que a imponência dos prédios proporcionava.


A bala trespassou-lhe o peito no momento em que calcava a extrema do passeio…



 
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sexta-feira, maio 18, 2007
paladar perfumado
Lancei demoradamente um bocejo com o braço retorcido para depois rebolar fora da cama. Desci as escadas descalço e tropecei. Cheguei muito mais depressa lá em baixo.
Abri as portas simultaneamente , semicerrei os olhos ao sol matutino e senti o paladar ao ar perfumado. Comecei a contar as flores que via enquanto tacteava com as plantas dos pés a face rugosa mas já aquecida dos cubos de granito.Por detrás da sebe florida uma pequena cabeça apareceu onde já demorava despercebida. Fuligem de pele envolta de olhos travessos atrás de negros cabelos soltos ao prazer liberto do vento.
Sai de casa para a rua apressado, calções de fazenda e botas de atanado combinam com a camisa branca lavada e escorrida numa tarde quente. É em sonho que se apressa já com tudo delineado. É cedo, mas só cedo é que a pode ver e a vê-la parece determinado. Pára a meio caminho e coloca o pé direito no bordo do muro escolhido. Sobe com ajuda dos braços devagar e equilibra-se de forma a libertar uma das mãos. Começa a escolher com cuidado. A forma tem que ser perfeita, o odor ideal será a frescura que apontar, e o brilho das pétalas é garantido pelo astro celeste que sobe num céu a azular. É esta! Pensou e assim esticou-se para a agarrar. Num súbito um estrondo, uma pausa, e do interior da casa à sua frente uma figura em pijama lhe aparece a espreguiçar.
Duas voltas à chave , um adeus meigo atirado ao cimo das escadas, meia branca e saia azul que assim que saem para a luz fundem-se numa só côr. O tapete da entrada murmura assim que a porta é batida e o voltar de costas à mesma se dá. Uma pinga na ponta do nariz é sensação de frescura e sinal de que as plantas nos vasos da varanda não terão um dia difícil. À sua frente um perfume agarrado a uma reluzente flôr estendida por um braço num corpo franzino encimado por dois olhos enormes e expectantes. O mundo pára e ganha vida em surpresa e audácia por instantes.
Mais atentamente reparo que neste momento fotográfico um pequeno braço se esforça em direcção das minhas flores. Dou um rugido ensonado para o ar e em passo de dança meia volta. Deslizo de volta para dentro com a certeza de que não me enganei.
 
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sábado, março 24, 2007
Vazio
De travo fundo,
De sopro vivo,
De azul imenso...

De corpo cheio,
De viva voz,
De pele sobre pele...

E de tempo,
E de timbre.

De ti.
 
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sexta-feira, março 23, 2007
Da cozinha para o quintal
São três degraus que vão da cozinha para o quintal
Numa passagem estreita se passa duma zona obscura para a claridade do dia
Faz-se isto num gesto, num momento, quase imperceptível e sem peso no tempo
O ombro direito arranca a subida e as pernas repetem o movimento
A roupa algo murmura tantas vezes como os degraus
Terra e japoneiras são cheiros que vagueiam e sucedem ao da marmelada acabada de fazer
Pousam em mim raios de sol que da folhagem ondulante se conseguem esgueirar
E os olhos focam distâncias que vão de paredes próximas a cores floridas ao largo
Por um sonho, este instante surge prolongado
Em movimento arrastado, preso em lentidão
Ansiedade e medo envoltos de neblina criando imagens em turbilhão
Dez cavalos de nevoeiro cavalgam a meu lado nesta ascensão

O sentido inverso está no entanto de sonhos e memórias apagado
Ir lá para fora sempre foi mais apelativo, ainda por cima lambuzado
 
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domingo, março 18, 2007
Dia de coca-cola
Ainda sem, do correr do tempo, a noção, ia eu de galochas para a preparatória, a assobiar, a balouçar, quinze minutos a dar á perna e a comer chicletes.
Um edifício descartável, provisório, implantado num lamaçal esperava-me e a muitos outros para dias de nariz perturbado, disposição agoniada. Uma fábrica de transformação de ossos, de muros gigantes em granito escurecido ladeava a nossa escola de cartão..
O resto da envolvente era não mais do que terrenos baldios, riachos raquíticos e histórias de perigo e aventuras. No interior das vedações, o chão em terra dissolvida em água dispunha a oportunidade do jogo do berlinde, corridas aos trambolhões, revelava sapos cuja sorte seria a de fumar até á morte e garantia um regresso a casa salpicado de sujidade.
Era já de tarde quando numa estrada perto de nós um gigante tombava. O sucedido foi divulgado no imediato e a escola ficou, por momentos, deserta. O gigante, imóvel, em instantes viu-se acossado por uma multidão de miudagem de galochas às cores que trepava ao seu flanco para da sua carga xarópica o despojar. Os adultos presentes, sem alternativa, presto se deixaram de interpôr. O gigante, ponto a ponto e num ápice, viu a sua côr clarear. Nova torrente de gente pequena agora de braços pesados , de regresso naquele fim de tarde se formou.
Foi mesmo o dia em que, ao longo de dois anos, se viu mais, e tantos sorrisos, traquinas alguns , presentes nas faces dos cachopos. A um refrescante tombar do camião com o pai natal, vestido de vermelho, se ficou tal dia de saque e brilho de alegria a dever.
 
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sábado, fevereiro 03, 2007
O encantador de pombas
Princípio de fim de tarde, numa praça vazia, circundada por trânsito automóvel. Dez bancos de jardim algumas sebes podadas e canteiros de flores escolhidas consoante a côr e o cheiro. O sol espalha uma luz laranja sobre um pavimento calcáreo que a reflete.
Um casal deixa-se aquecer por esta visão e sentados discutem em silêncio. Pombas passeiam na praça ao abandono. Ela desvia a cara do parceiro em busca de uma palavra meiga. Ele mede forças e não tira os olhos dos contornos das pedras do chão que percorre atentamente. Na frente do casal um vulto cresce por entre a aura iluminada. É um homem de traço árabe, jovem mas já com cabelo grisalho e vestido de uma forma simples mas asseada. O branco nos seus olhos enormes contrasta com a tez escura. Pede uma moeda... Ela procura no porta moedas mas este está vazio. Levanta as sobrancelhas e abre as palmas das mãos para o céu, gostava de poder ajudar mas... estava sozinha.
O parceiro continuava a serpentear o olhar pelo chão. O pedinte agradeceu mesmo assim e afastou-se. A luz voltou a cegar os instantes seguintes e o perímetro de som de automóvel tomou novamente presença.
De novo o vulto acercou-se deles trazendo consigo uma oferenda. Olharam para cima e o mesmo sorriso, mais aberto, os saudou. Colocou uma pomba no colo dela e depois outra no colo dele. O casal, surpreso sorriu em unissuno e miraram-se. As pombas, sossegadas parecia estarem habitudas a tal postura entre os humanos e deixavam afagar-se com prazer. O vulto já se afastara e por entre duas pombas sentadas num banco de jardim o silêncio de palavras também.
 
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sexta-feira, fevereiro 02, 2007
A oito metros do chão
Numa rua sossegada.
Uma casa, num quintal.
Uma família.
E os seus animais de estimação.
Pai militar, mãe professora . Filho de trinta e tais fotógrafo de casamentos.
Bons vizinhos. Gente de confiança, sempre disposta a ajudar.
Vivem numa casa em que cabiam muitos mais ladeada por uma faixa de terreno que vira nas traseiras. A este “L” chamam-lhe o quintal. E onde o “L” vira está o poste. No seu topo está uma pequena casota metálica.
Os cães, três, parecem loucos com a gritaria. Avançam e recuam num pêndulo de verocidade e aflição. Muitos de todos os dias.
O tilintar da corrente é ouvido em rasgos e a força implícita no som não nos é comum.
O poste, corre-o , escorrega-o , abraça-o, aperta-o , trepa-o, abandona-o em troca do cimento para atacar pardais ou mostrar aos cães quem ainda não perdeu a centelha selvagem.
Um dia escapa. Percorre os quintais ao longo da rua assustado e assustando todos que se cruzam com quem não conta com animais selvagens nos fundos da casa. Num destes uma idosa sem medo aproxima-se devagar. O símio estranha mas acerca-se também ao longo de um muro alto. Páram frente a frente em níveis diferentes. O babuíno senta-se no muro, estende os braços e coloca os seus longos dedos nos ainda fartos cabelos da senhora. Em procura atenta separa cuidadosamente os cabelos brancos. Há como que uma ternura nos seus movimentos assim como compaixão humana na entrega a tal proximidade.
Poucas horas depois o tilintar faz-se novamente ouvir numa réstea de tempo.
No topo a oito metros do chão vive uma vida de atracção e desespera nos fins de tarde de verão, com o céu a avermelhar e a incendiar uma memória de savanas e de liberdade.
 
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sábado, janeiro 27, 2007
Sem Sentido (V)

Rodopiou a chave na fechadura, fechando a porta atrás de si.
Arrastou-se até à sala, prostrando-se no conforto ténue do sofá.
A maratona do dia havia terminado; agradava-lhe sentir a sua própria pulsação, ouvir os seus próprios movimentos torácicos e a expiração em lufadas de ar.
Sentou-se, acendeu um cigarro e contemplou o seu próprio vazio.
E o sossego.
E o silencio.
Bastaram porém uns breves minutos para regressar ao seu estado de inquietação: pressentia que um corpo estranho o acompanhava no mesmo espaço. Foi então que se levantou sobressaltado e olhou em redor.

Um corpo balançava por cima de uma cadeira tombada, no epicentro da sala.
Do tecto pendia uma corda.
Da corda, pendia um corpo.
O seu.
Sem palavras, porque há muito que as havia perdido.

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sábado, janeiro 20, 2007
Sem Sentido (IV)
Agastado pelas correrias, a sua desenvoltura física não lhe permitia mais esforço. Quebrou e dava já sinal de irrecuperável desorientação. Acho por bem sentar-se e discutir ali mesmo se aquilo anda fazia algum sentido…

Em tudo o resto à sua volta, percorriam-se os mesmos tempos verbais de sempre: o autocarro parou no apeadeiro, o sinal luminoso avisou em verde os senhores condutores; o jornal trazia capa.

Não se demorou muito. Esgotou-se…

Eram horas que pediam descanso, voltar a casa, dormir. Ali já não precisavam de si. Até porque, sem palavras, também de pouco lhes valeria.

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quarta-feira, janeiro 10, 2007
Sem Sentido (III)
Já nem dava pelas horas passarem, agora que regressava à calçada citadina. Progredia em dança animada de pés descalços, ou ainda que sem pés e mesmo em vazio de ritmo…
Ritmava-se com o bater de coração, com o estalar entre dentes de quem se sente em ebulição, de nervos que se disparam em acelerada convulsão. E transpirava! Gota por gota, ia registando impressões no corpo, de resistência e de dor…
Por momentos, havia deixado de pensar; decisão tomada à última hora e que ainda não lhe tinha merecido grande contestação. Andar, andar! Era isso que agora precisava, de andar! Desprender-se de pensar, desligar-se. Tinha de fugir dali.
Quer lhe faltassem os pés e ainda que lhe tivessem roubado as palavras.

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sábado, janeiro 06, 2007
Giz na mão esquerda, Giz na mão direita
Que figura era esta que tanto nos amedrontava?
Os momentos sucedem-se na vida e alguns marcam-nos sem dar-mos por isso, outros, mergulhos de tensão e incredulidade revelam-se diferentes.
Amedrontava porque perseguia com a sua garra de voz, descobria com um fitar fulminante, apontava e zunia a cana que tudo alcançava. Era gélida na entoação e branca num metro e oitenta. Soltava um gemido que em segundos crescia em rugido e a trovoada destes sucedia-se vezes a mais.
Todos os olhos ,tão abertos, a acompanhavam num medo comandante e o sonho não obedecia.
Ela toda era costas agora . Um Vê de dorso e um vê de saias partilhavam o mesmo vértice. Braços em riste. Todos os olhos. Um giz na mão esquerda. Um giz na mão direita. Parecia querer abraçar o quadro negro. Podíamos ver isto vezes sem conta, e sempre seria a primeira vez. Como um maestro ... ela, como magia ... as letras que nasciam entrelaçadas no fundo preto, em pontas opostas, e que corriam nas palavras ao encontro umas das outras em caligrafia irrepreensível. Todos os olhos encantados. Frase escrita e o movimento de fechar as cortinas acabado. O intervalo dos paus de giz no seu momento último não diferia de todos os outros intervalos entre as demais palavras.
Que figura era esta que tanto nos fascinava?
 
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domingo, dezembro 24, 2006
Sem Sentido (II)
O cigarro fumava-o, de forma despreocupada. SG ventil a meio filtro. E ele alinhava na tramóia, deixando-se envolver pelo fumo. Gostava de dançar no seu som e de nele se intrometer.
Entretido neste diálogo com o vício, demorava-se à porta do edifício. Balançava em redor da sineta, não tendo ainda definido o melhor momento para a fazer soar. Entretanto, desgastava-se no fumo.
Convinha-lhe um contratempo dessa dimensão, 5 a 6 minutos. É que ainda lhe faltavam palavras, por certo para dar sequência à cena, depois do soar estridente do engenho eléctrico que, no quadro à sua frente, marcava 4º piso.
Voltou a olhar-se e confirmou a sensação de estar ainda descalço. O problema é que agora já nem sentia os pés...
E foi nesta sua própria incompreensão que tomou a decisão: não se fazer sentir no prédio. Apagou o cigarro e percebeu-se melhor: descalço, sem pés e sem palavras.
Era altura de começar a fingir que vivia.

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quarta-feira, dezembro 20, 2006
Gravatas
"Raios!", vociferou!
Decididamente, não estava nos seus dias. Parecia-lhe impossível como, sendo ele um perito em gravatas, o nó lhe estava a custar tanto fazer.
"Raios!", repetiu-se. De frente ao espelho, as constantes acrobacias entre mãos e seda não sortiam efeito. Pelo menos, um efeito que se queria equilibrado - um nó de gravata que se visse!
O problema não residia nos seus gestos; centrava-se, antes, na reunião de escolha de cores para a campanha publicitária mais importante de sua vida, que iria começar dali a uns minutos no escritório.
Pensara a noite toda no seu discurso e na cara do Jorge, quando lhe interceptasse a iniciativa. Sobretudo, sentia o impulso que a conclusão da reunião podia merecer à sua carreira. Não que isso lhe trouxesse grandes mudanças a nível financeiro; era tão só uma questão pessoal: ficar uns pontos à frente do Jorge, a sorrir na foto de família da empresa.
Elaborou um estudo à volta do verde, sobre o fundo do seu significado filosófico. Tinha feito um verdadeiro tratado e sentia-se bem com isso. "O verde preenche-nos!", começaria assim a palestra.
Aquilo deixou de ser mais uma simples campanha publicitária, era necessário incendiar os destinatários, surpreendê-los, esmagá-los e, sobretudo, deixar o palerma do Jorge nas covas.
"O verde preenche-nos", repetia, enquanto tentava dominar o nó. "Raios me partam, mas será que hoje não saio daqui!".
Profissionalmente, nada tinha contra o rapaz. Pessoalmente, a conversa era outra. Irritava-o, profundamente. E roubava-lhe espaço. Bem… o facto de lhe ter roubado a mulher, também não era de menosprezar.
"O verde preenche-nos", desafiava-se. Faltavam minutos. E faltava-lhe ainda apanhar o metro, descer a Rua dos Passeios, subir ao 3º piso, marcar o ponto. Imperioso, porém, era resolver o problema do nó. É que não basta um discurso efectivo, eficiente, cativante; sobretudo, é necessário um bom nó de gravata.
Por fim, lá se amanhou. Um bocado com a cara para a direita, mas conservando características que lhe permitia definir-se como nó, a gravata finalmente deu o jeito. E ele desandou em direcção ao seu momento.
Estavam lá todos, até o Jorge. De acordo com a política da casa sempre que se discutia uma campanha nova, as propostas dos colaboradores eram apresentadas por ordem sorteada. Naquela manhã, a sorte fazia-lhe finca-pé - a primeira improvisação sobre cores pertencia ao Jorge.
"Bom... aguardo e surpreendo-o magistralmente pela retaguarda", raciocinou.
Jorge levanta-se, arranja o seu impecável fato e, sejamos correctos, o seu magistral nó de gravata. E atira-se à audiência: "O verde preenche-nos!", ouve-se na sala.
De forma ordeira e sem grandes poeiras, saiu da sala, atirou a gravata para o chão e foi, calmamente, beber o café que lhe tinha escapado naquela manhã. Já nem ouviu os aplausos a que o Jorge, merecidamente, foi votado.
"Raios", pensou. Definitivamente, o problema foi o nó da gravata.
 
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domingo, dezembro 10, 2006
Sem Sentido (I)
O dia ainda mal começou e já lhe faltam palavras.
Há vários dias que lhe escasseiam, elas, as palavras. Nem uma mera conjugação de letras, simples, que de algum modo fizessem sentido ou que se sentissem ou que fossem ouvidas. Nada.
Mesmo da noite, ainda que mal dormida, poderia ter algum proveito; é também para isso que nos servimos dela. Mas a que passou não deixou marcas, apenas lhe assentuou o vazio imposto pela ausência de palavaras.
Um café e um copo de água, balbuciou.
Essas foram fáceis, porque as repete todas as manhãs. É um homem de hábitos, essencialmente de repetição de gestos e actos. Todo ele se repete e só nessa duplicação é que se sente. Repetido, mas definido.
Em dois momentos, bebe o café, que empurra com a água. Levanta-se, paga a despesa e sai.
Pimeira parte do dia bem servida, pensa. Sem preocupações de destino, atira-se ao passeio que lhe assenta nos pés. Não está descalço, mas é como se estivesse. Sente os desenhos da calçada, como se desenhados na palma dos próprios pés. Sente o ar e as pessoas e os barulhos. Sente as curvas e os edifícios, as varandas e os estandartes.
O dia ainda mal começou. E já são dias a mais mal começados.
Faltam-lhe palavras.

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sábado, dezembro 09, 2006
tesouras e tafetás
Éramos seis ou sete e esperávamos em fila.
Á nossa frente um homem empenhado desenrolava tecidos diversos, marcava distâncias pelo balcão tabelado e com longas tesouras cintilantes retalhava os panos contemplados.
Atendia um a um com a rectidão de antigamente e a espera era amenizada com o espectáculo do trabalho célere, quase mecânico pausado com as interrogações amáveis de quem prezava o seu ofício e os seus clientes. “Esta côr agrada-lhe? Sente o toque? Creia-me que é o melhor que temos de momento.Não concorda que sai de cá bem servido?”
Éramos seis ou sete já imbuídos no mundo deste homem quando subitamente nos interromperam.
Tesouradas e tafetás esfumaram-se no ar com o guincho da travagem.O céu reapareceu e as cores retornaram à sua dureza. Focamos a porta do autocarro enquanto esta se abria e empunhamos a senha por picar. Iniciamos viagem agora em direcções diferentes e a paragem do hospital psiquiátrico Conde Ferreira mirrava uma vez mais à sua realidade.
 
embalado por Ricardo
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Check-in dois
Do pouco que dos dias ainda vamos retendo, as personagens são quem mais nos marca. Ainda que de quando em vez se revelem imaginárias. Será por entre elas e suas diatribes que nos guiaremos.
E para começar, servia-me um chazinho de camomila...
 
embalado por Nuno
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Check-in um
Dou por mim a escrever esta nota de apresentação sem esquecer o recente convite, o embalo do rodopiante empenho e o ombro a ombro na materialização deste projecto, que pretende dar vida ao esquecimento, soltar faúlhas da imaginação, libertar histórias.
A todos e a ti Nuno, obrigado.
 
embalado por Ricardo
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