sábado, fevereiro 03, 2007
O encantador de pombas
Princípio de fim de tarde, numa praça vazia, circundada por trânsito automóvel. Dez bancos de jardim algumas sebes podadas e canteiros de flores escolhidas consoante a côr e o cheiro. O sol espalha uma luz laranja sobre um pavimento calcáreo que a reflete.
Um casal deixa-se aquecer por esta visão e sentados discutem em silêncio. Pombas passeiam na praça ao abandono. Ela desvia a cara do parceiro em busca de uma palavra meiga. Ele mede forças e não tira os olhos dos contornos das pedras do chão que percorre atentamente. Na frente do casal um vulto cresce por entre a aura iluminada. É um homem de traço árabe, jovem mas já com cabelo grisalho e vestido de uma forma simples mas asseada. O branco nos seus olhos enormes contrasta com a tez escura. Pede uma moeda... Ela procura no porta moedas mas este está vazio. Levanta as sobrancelhas e abre as palmas das mãos para o céu, gostava de poder ajudar mas... estava sozinha.
O parceiro continuava a serpentear o olhar pelo chão. O pedinte agradeceu mesmo assim e afastou-se. A luz voltou a cegar os instantes seguintes e o perímetro de som de automóvel tomou novamente presença.
De novo o vulto acercou-se deles trazendo consigo uma oferenda. Olharam para cima e o mesmo sorriso, mais aberto, os saudou. Colocou uma pomba no colo dela e depois outra no colo dele. O casal, surpreso sorriu em unissuno e miraram-se. As pombas, sossegadas parecia estarem habitudas a tal postura entre os humanos e deixavam afagar-se com prazer. O vulto já se afastara e por entre duas pombas sentadas num banco de jardim o silêncio de palavras também.
 
embalado por Ricardo
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sexta-feira, fevereiro 02, 2007
A oito metros do chão
Numa rua sossegada.
Uma casa, num quintal.
Uma família.
E os seus animais de estimação.
Pai militar, mãe professora . Filho de trinta e tais fotógrafo de casamentos.
Bons vizinhos. Gente de confiança, sempre disposta a ajudar.
Vivem numa casa em que cabiam muitos mais ladeada por uma faixa de terreno que vira nas traseiras. A este “L” chamam-lhe o quintal. E onde o “L” vira está o poste. No seu topo está uma pequena casota metálica.
Os cães, três, parecem loucos com a gritaria. Avançam e recuam num pêndulo de verocidade e aflição. Muitos de todos os dias.
O tilintar da corrente é ouvido em rasgos e a força implícita no som não nos é comum.
O poste, corre-o , escorrega-o , abraça-o, aperta-o , trepa-o, abandona-o em troca do cimento para atacar pardais ou mostrar aos cães quem ainda não perdeu a centelha selvagem.
Um dia escapa. Percorre os quintais ao longo da rua assustado e assustando todos que se cruzam com quem não conta com animais selvagens nos fundos da casa. Num destes uma idosa sem medo aproxima-se devagar. O símio estranha mas acerca-se também ao longo de um muro alto. Páram frente a frente em níveis diferentes. O babuíno senta-se no muro, estende os braços e coloca os seus longos dedos nos ainda fartos cabelos da senhora. Em procura atenta separa cuidadosamente os cabelos brancos. Há como que uma ternura nos seus movimentos assim como compaixão humana na entrega a tal proximidade.
Poucas horas depois o tilintar faz-se novamente ouvir numa réstea de tempo.
No topo a oito metros do chão vive uma vida de atracção e desespera nos fins de tarde de verão, com o céu a avermelhar e a incendiar uma memória de savanas e de liberdade.
 
embalado por Ricardo
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