domingo, dezembro 24, 2006
Sem Sentido (II)
O cigarro fumava-o, de forma despreocupada. SG ventil a meio filtro. E ele alinhava na tramóia, deixando-se envolver pelo fumo. Gostava de dançar no seu som e de nele se intrometer.
Entretido neste diálogo com o vício, demorava-se à porta do edifício. Balançava em redor da sineta, não tendo ainda definido o melhor momento para a fazer soar. Entretanto, desgastava-se no fumo.
Convinha-lhe um contratempo dessa dimensão, 5 a 6 minutos. É que ainda lhe faltavam palavras, por certo para dar sequência à cena, depois do soar estridente do engenho eléctrico que, no quadro à sua frente, marcava 4º piso.
Voltou a olhar-se e confirmou a sensação de estar ainda descalço. O problema é que agora já nem sentia os pés...
E foi nesta sua própria incompreensão que tomou a decisão: não se fazer sentir no prédio. Apagou o cigarro e percebeu-se melhor: descalço, sem pés e sem palavras.
Era altura de começar a fingir que vivia.

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quarta-feira, dezembro 20, 2006
Gravatas
"Raios!", vociferou!
Decididamente, não estava nos seus dias. Parecia-lhe impossível como, sendo ele um perito em gravatas, o nó lhe estava a custar tanto fazer.
"Raios!", repetiu-se. De frente ao espelho, as constantes acrobacias entre mãos e seda não sortiam efeito. Pelo menos, um efeito que se queria equilibrado - um nó de gravata que se visse!
O problema não residia nos seus gestos; centrava-se, antes, na reunião de escolha de cores para a campanha publicitária mais importante de sua vida, que iria começar dali a uns minutos no escritório.
Pensara a noite toda no seu discurso e na cara do Jorge, quando lhe interceptasse a iniciativa. Sobretudo, sentia o impulso que a conclusão da reunião podia merecer à sua carreira. Não que isso lhe trouxesse grandes mudanças a nível financeiro; era tão só uma questão pessoal: ficar uns pontos à frente do Jorge, a sorrir na foto de família da empresa.
Elaborou um estudo à volta do verde, sobre o fundo do seu significado filosófico. Tinha feito um verdadeiro tratado e sentia-se bem com isso. "O verde preenche-nos!", começaria assim a palestra.
Aquilo deixou de ser mais uma simples campanha publicitária, era necessário incendiar os destinatários, surpreendê-los, esmagá-los e, sobretudo, deixar o palerma do Jorge nas covas.
"O verde preenche-nos", repetia, enquanto tentava dominar o nó. "Raios me partam, mas será que hoje não saio daqui!".
Profissionalmente, nada tinha contra o rapaz. Pessoalmente, a conversa era outra. Irritava-o, profundamente. E roubava-lhe espaço. Bem… o facto de lhe ter roubado a mulher, também não era de menosprezar.
"O verde preenche-nos", desafiava-se. Faltavam minutos. E faltava-lhe ainda apanhar o metro, descer a Rua dos Passeios, subir ao 3º piso, marcar o ponto. Imperioso, porém, era resolver o problema do nó. É que não basta um discurso efectivo, eficiente, cativante; sobretudo, é necessário um bom nó de gravata.
Por fim, lá se amanhou. Um bocado com a cara para a direita, mas conservando características que lhe permitia definir-se como nó, a gravata finalmente deu o jeito. E ele desandou em direcção ao seu momento.
Estavam lá todos, até o Jorge. De acordo com a política da casa sempre que se discutia uma campanha nova, as propostas dos colaboradores eram apresentadas por ordem sorteada. Naquela manhã, a sorte fazia-lhe finca-pé - a primeira improvisação sobre cores pertencia ao Jorge.
"Bom... aguardo e surpreendo-o magistralmente pela retaguarda", raciocinou.
Jorge levanta-se, arranja o seu impecável fato e, sejamos correctos, o seu magistral nó de gravata. E atira-se à audiência: "O verde preenche-nos!", ouve-se na sala.
De forma ordeira e sem grandes poeiras, saiu da sala, atirou a gravata para o chão e foi, calmamente, beber o café que lhe tinha escapado naquela manhã. Já nem ouviu os aplausos a que o Jorge, merecidamente, foi votado.
"Raios", pensou. Definitivamente, o problema foi o nó da gravata.
 
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domingo, dezembro 10, 2006
Sem Sentido (I)
O dia ainda mal começou e já lhe faltam palavras.
Há vários dias que lhe escasseiam, elas, as palavras. Nem uma mera conjugação de letras, simples, que de algum modo fizessem sentido ou que se sentissem ou que fossem ouvidas. Nada.
Mesmo da noite, ainda que mal dormida, poderia ter algum proveito; é também para isso que nos servimos dela. Mas a que passou não deixou marcas, apenas lhe assentuou o vazio imposto pela ausência de palavaras.
Um café e um copo de água, balbuciou.
Essas foram fáceis, porque as repete todas as manhãs. É um homem de hábitos, essencialmente de repetição de gestos e actos. Todo ele se repete e só nessa duplicação é que se sente. Repetido, mas definido.
Em dois momentos, bebe o café, que empurra com a água. Levanta-se, paga a despesa e sai.
Pimeira parte do dia bem servida, pensa. Sem preocupações de destino, atira-se ao passeio que lhe assenta nos pés. Não está descalço, mas é como se estivesse. Sente os desenhos da calçada, como se desenhados na palma dos próprios pés. Sente o ar e as pessoas e os barulhos. Sente as curvas e os edifícios, as varandas e os estandartes.
O dia ainda mal começou. E já são dias a mais mal começados.
Faltam-lhe palavras.

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sábado, dezembro 09, 2006
tesouras e tafetás
Éramos seis ou sete e esperávamos em fila.
Á nossa frente um homem empenhado desenrolava tecidos diversos, marcava distâncias pelo balcão tabelado e com longas tesouras cintilantes retalhava os panos contemplados.
Atendia um a um com a rectidão de antigamente e a espera era amenizada com o espectáculo do trabalho célere, quase mecânico pausado com as interrogações amáveis de quem prezava o seu ofício e os seus clientes. “Esta côr agrada-lhe? Sente o toque? Creia-me que é o melhor que temos de momento.Não concorda que sai de cá bem servido?”
Éramos seis ou sete já imbuídos no mundo deste homem quando subitamente nos interromperam.
Tesouradas e tafetás esfumaram-se no ar com o guincho da travagem.O céu reapareceu e as cores retornaram à sua dureza. Focamos a porta do autocarro enquanto esta se abria e empunhamos a senha por picar. Iniciamos viagem agora em direcções diferentes e a paragem do hospital psiquiátrico Conde Ferreira mirrava uma vez mais à sua realidade.
 
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Check-in dois
Do pouco que dos dias ainda vamos retendo, as personagens são quem mais nos marca. Ainda que de quando em vez se revelem imaginárias. Será por entre elas e suas diatribes que nos guiaremos.
E para começar, servia-me um chazinho de camomila...
 
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Check-in um
Dou por mim a escrever esta nota de apresentação sem esquecer o recente convite, o embalo do rodopiante empenho e o ombro a ombro na materialização deste projecto, que pretende dar vida ao esquecimento, soltar faúlhas da imaginação, libertar histórias.
A todos e a ti Nuno, obrigado.
 
embalado por Ricardo
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