Duas linhas ondulantes de pele limpa abrem-se à passagem de um choro.
Duas mãos erguem-se soltando os dedos em súplica.
Dois joelhos tombam em dor aceite como mais um castigo que a pena divina impõe.
A exaustão da fome, do frio e da exclusão percorrem o comprimento do corpo, numa vaga que se desfaz num súbito fitar o vazio logo seguido do doce encerrar em água das pálpebras.
Finda este movimento com o estrondo seco de carne espalhada num chão molhado.
Encharcado estava o dia desde o amanhecer. E escuro. Do céu pareciam descer nuvens de corpo negro que tudo encobriam e gelavam. Linhas imóveis de veículos soltavam o contínuo elemento de ruído que tudo preenchia. Entre difusa e frágil luz natural, faróis cintilavam gotículas em tonalidades quentes. Olhares em espaço apertado esgueiravam-se uns dos outros, corpos encolhiam-se no medo do contacto e o silêncio predominava no transporte comum que se movia numa espera entre espasmos. Outra dimensão envolve o tempo ali passado e uma inquietação crescente desfaz-se em apatia de aceitação. Olhávamos mas só pensamentos desfilavam à nossa frente.
Até que a porta se abriu do mesmo modo de sempre. Um vulto enorme perfila-se num corredor ladeado de olhares agora atentos e incrédulos. Um cobertor de fuligem envolve um corpo com cabeça de cabelos longos e negros em água. Um cheiro de pestilência parece atravessar-nos demoradamente. Imóvel em pé, de olhar fugidio, este homem parece agora diminuir de tamanho. Sussuros levantam-se criando estofo para exclamações de repúdio. Estas fazem o homem contorcer-se em aflição. Num destes movimentos a miserável veste escapa-se em queda revelando uma magra, faminta nudez envolta em sujidade. O olhar fugidio é agora franco, aberto a todos os presentes e a sua tristeza latente remete-nos ao mais profundo silêncio.