sábado, dezembro 08, 2007
Brown
Dei por mim a fechar os olhos por instantes enquanto a omilia decorria. Estremeci e reassumi a postura atenta com a qual havia impressionado nos primeiros instantes da cerimónia. Acreditava em Deus, mas isto aborrecia-me, desde sempre que o havia sentido, mas também sabia que me cabia esta obrigação, a qual, a custo, suportaria.
Os sussurros decorados e as canções de tristeza deixavam-me triste também. Por isso tantava abstrair-me de tal ambiente a percorrer com o olhar as formas que a nave central ostentava, assim como as cabeças mais altas ou pequenas e os seus diversos penteados, descobertos, tapados, armados ou rarefeitos. Qualquer voz, ruído dissonante da homogeneidade católica activa era notado e alvo de perseguição visual até ser identificado. Estranhamente um conjunto de espantadas exclamações, pequenos risos, que da fila de trás pareciam mover-se em onda até à frente, onde eu me encontrava fizeram-se ouvir. Não gostava muito de olhar para trás, estragava a postura, e o altar era, como é óbvio, em frente. Mas deixei cair o lenço, e lá tive que me virar. No corredor central, como teria conseguido entrar? estava um cão castanho magricela. Ninguém o afugentou na sua desconfiada caminhada em direcção ao padre, que se encontrava frente ao altar, de livro na mão, óculos a escorregar pelo nariz e olhos azuis e doces. O septuagenário fechou o livro devagar e desceu os três degraus, ficando mais ou menos à minha altura. “Que fazes aqui, pá?”, perguntou ao magricela. Fez-lhe uma festa na cabeça, virou-se e voltou a subir os três degraus. Com dois dedos tocou na esponja do microfone e nos ouvidos de toda a gente. “Alguém quer ficar com este malandro?
Voltei eu e a minha mulher de carro azul resplandecente para casa, a nova casa de um magricela castanho que viajava também no banco de trás.
 
embalado por Ricardo
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