segunda-feira, maio 28, 2007
Cruzamento

Atropelando-se nos seus próprios passos, havia finalmente chegado à nevralgia da sua curta viagem. Em Sarajevo, o cruzamento que agora se abria aos olhos era tido como um posto de morte: de visão privilegiada para snipers, a intersecção dos dois amplos segmentos de asfalto conformava campo fácil para a mira de armas de precisão.

Sabia disso. E também que eram parcas as probabilidades de se desenlear das avenidas e sair a respirar do outro lado. Apanhou breves suspiros de ar, concentrou-se no objecto e soltou-se em correria.

Os disparos não se fizeram sentir, mas ainda assim os nervos tropeçaram-no. Desamparado, estatelou-se em pleno centro.

A dor intensa que a gravidade lhe proporcionou mal se avizinhava ao medo que lhe rebentava nas veias. É que, em movimento, ainda acalentava esperanças de cumprir o trajecto na totalidade; prostrado, a coisa já complicava… Limitou-se a cobrir de pálpebras as duas íris e aguardou que a bala cumprisse o seu mecânico desiderato.

Um… dois… dez segundos se passaram... e ainda se sentia! Venceu a timidez e espreitou o provável local onde as cobardes miras telescópicas se encobriam... Nada. Silêncio absoluto.

Experimentou a euforia. Qual fosse a razão, ainda estava vivo. Pedia-se, pois, rapidez de movimentos. Recompôs-se e lançou o trôpego corpo para o resto que lhe sobrava, uns escassos metros mais, nem meia dúzia de passos para se acolher no abrigo que a imponência dos prédios proporcionava.


A bala trespassou-lhe o peito no momento em que calcava a extrema do passeio…



 
embalado por Nuno
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sexta-feira, maio 18, 2007
paladar perfumado
Lancei demoradamente um bocejo com o braço retorcido para depois rebolar fora da cama. Desci as escadas descalço e tropecei. Cheguei muito mais depressa lá em baixo.
Abri as portas simultaneamente , semicerrei os olhos ao sol matutino e senti o paladar ao ar perfumado. Comecei a contar as flores que via enquanto tacteava com as plantas dos pés a face rugosa mas já aquecida dos cubos de granito.Por detrás da sebe florida uma pequena cabeça apareceu onde já demorava despercebida. Fuligem de pele envolta de olhos travessos atrás de negros cabelos soltos ao prazer liberto do vento.
Sai de casa para a rua apressado, calções de fazenda e botas de atanado combinam com a camisa branca lavada e escorrida numa tarde quente. É em sonho que se apressa já com tudo delineado. É cedo, mas só cedo é que a pode ver e a vê-la parece determinado. Pára a meio caminho e coloca o pé direito no bordo do muro escolhido. Sobe com ajuda dos braços devagar e equilibra-se de forma a libertar uma das mãos. Começa a escolher com cuidado. A forma tem que ser perfeita, o odor ideal será a frescura que apontar, e o brilho das pétalas é garantido pelo astro celeste que sobe num céu a azular. É esta! Pensou e assim esticou-se para a agarrar. Num súbito um estrondo, uma pausa, e do interior da casa à sua frente uma figura em pijama lhe aparece a espreguiçar.
Duas voltas à chave , um adeus meigo atirado ao cimo das escadas, meia branca e saia azul que assim que saem para a luz fundem-se numa só côr. O tapete da entrada murmura assim que a porta é batida e o voltar de costas à mesma se dá. Uma pinga na ponta do nariz é sensação de frescura e sinal de que as plantas nos vasos da varanda não terão um dia difícil. À sua frente um perfume agarrado a uma reluzente flôr estendida por um braço num corpo franzino encimado por dois olhos enormes e expectantes. O mundo pára e ganha vida em surpresa e audácia por instantes.
Mais atentamente reparo que neste momento fotográfico um pequeno braço se esforça em direcção das minhas flores. Dou um rugido ensonado para o ar e em passo de dança meia volta. Deslizo de volta para dentro com a certeza de que não me enganei.
 
embalado por Ricardo
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