sábado, janeiro 27, 2007
Sem Sentido (V)

Rodopiou a chave na fechadura, fechando a porta atrás de si.
Arrastou-se até à sala, prostrando-se no conforto ténue do sofá.
A maratona do dia havia terminado; agradava-lhe sentir a sua própria pulsação, ouvir os seus próprios movimentos torácicos e a expiração em lufadas de ar.
Sentou-se, acendeu um cigarro e contemplou o seu próprio vazio.
E o sossego.
E o silencio.
Bastaram porém uns breves minutos para regressar ao seu estado de inquietação: pressentia que um corpo estranho o acompanhava no mesmo espaço. Foi então que se levantou sobressaltado e olhou em redor.

Um corpo balançava por cima de uma cadeira tombada, no epicentro da sala.
Do tecto pendia uma corda.
Da corda, pendia um corpo.
O seu.
Sem palavras, porque há muito que as havia perdido.

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sábado, janeiro 20, 2007
Sem Sentido (IV)
Agastado pelas correrias, a sua desenvoltura física não lhe permitia mais esforço. Quebrou e dava já sinal de irrecuperável desorientação. Acho por bem sentar-se e discutir ali mesmo se aquilo anda fazia algum sentido…

Em tudo o resto à sua volta, percorriam-se os mesmos tempos verbais de sempre: o autocarro parou no apeadeiro, o sinal luminoso avisou em verde os senhores condutores; o jornal trazia capa.

Não se demorou muito. Esgotou-se…

Eram horas que pediam descanso, voltar a casa, dormir. Ali já não precisavam de si. Até porque, sem palavras, também de pouco lhes valeria.

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quarta-feira, janeiro 10, 2007
Sem Sentido (III)
Já nem dava pelas horas passarem, agora que regressava à calçada citadina. Progredia em dança animada de pés descalços, ou ainda que sem pés e mesmo em vazio de ritmo…
Ritmava-se com o bater de coração, com o estalar entre dentes de quem se sente em ebulição, de nervos que se disparam em acelerada convulsão. E transpirava! Gota por gota, ia registando impressões no corpo, de resistência e de dor…
Por momentos, havia deixado de pensar; decisão tomada à última hora e que ainda não lhe tinha merecido grande contestação. Andar, andar! Era isso que agora precisava, de andar! Desprender-se de pensar, desligar-se. Tinha de fugir dali.
Quer lhe faltassem os pés e ainda que lhe tivessem roubado as palavras.

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sábado, janeiro 06, 2007
Giz na mão esquerda, Giz na mão direita
Que figura era esta que tanto nos amedrontava?
Os momentos sucedem-se na vida e alguns marcam-nos sem dar-mos por isso, outros, mergulhos de tensão e incredulidade revelam-se diferentes.
Amedrontava porque perseguia com a sua garra de voz, descobria com um fitar fulminante, apontava e zunia a cana que tudo alcançava. Era gélida na entoação e branca num metro e oitenta. Soltava um gemido que em segundos crescia em rugido e a trovoada destes sucedia-se vezes a mais.
Todos os olhos ,tão abertos, a acompanhavam num medo comandante e o sonho não obedecia.
Ela toda era costas agora . Um Vê de dorso e um vê de saias partilhavam o mesmo vértice. Braços em riste. Todos os olhos. Um giz na mão esquerda. Um giz na mão direita. Parecia querer abraçar o quadro negro. Podíamos ver isto vezes sem conta, e sempre seria a primeira vez. Como um maestro ... ela, como magia ... as letras que nasciam entrelaçadas no fundo preto, em pontas opostas, e que corriam nas palavras ao encontro umas das outras em caligrafia irrepreensível. Todos os olhos encantados. Frase escrita e o movimento de fechar as cortinas acabado. O intervalo dos paus de giz no seu momento último não diferia de todos os outros intervalos entre as demais palavras.
Que figura era esta que tanto nos fascinava?
 
embalado por Ricardo
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